Lúcifer - O primeiro Anjo
O Anjo Perfeito
CAPÍTULO I
A luz e a serpente
Antes do tempo, havia a eternidade. E, ao seu fim, ela será tudo que restará. Pois a eternidade é o tempo do Deus Único. Sua essência e Sua morada.
E, no vazio e na escuridão eternos, Deus conhecia o Bem e o Mal.
Não como Seus filhos, depois dEle, mas na forma mais pura e poderosa que essas duas forças jamais existiram, guerreando no âmago do Senhor para libertarem-se uma da outra.
O destino do Universo, ainda a ser criado, foi decidido nessa batalha
primordial, quando finalmente o Bem se mostrou mais forte e prevaleceu.
Assim, Deus arrancou o Mal de dentro de Si e aprisionou-o firmemente em Sua mão esquerda para que jamais escapasse. Uma sombra irracional de ódio e desespero, enfraquecida pela separação e humilhada pela derrota, serpenteando entre os dedos de Deus com um único desejo: vingança.
Livre do Mal, Deus cresceu em poder e amor. Porém, nada havia para Ele amar. Então, Ele ergueu Sua mão direita, e dela se fez a luz. Um clarão tão intenso que os olhos do Senhor se fecharam. Era o nascimento do tempo como o conhecemos. Pois a luz, que deveria ser eterna, serenou.
E, em seu pequeno ponto de origem, sobre a descomunal palma da mão direita do Senhor, havia agora a mais linda criaturinha. Tão perfeitaquanto o próprio Criador. Um delicado bebê, de ralos cabelos negros e envolto em suave luz própria. Ele era à imagem e semelhança de seu Pai Todo-Poderoso, à exceção do par de delicadas asas que trazia às costas,
com penas de um branco tão vívido que pareciam brilhar.
O pequeno ser abriu os olhos em um sorriso de puro amor e viu Deus chorar de alegria. Uma alegria que Ele não imaginava possível. Tomado pelo inédito sentimento, o Senhor proferiu Suas primeiras palavras, revelando Seu Santo Nome ao amado filho.
Com o coração inundado pela graça de Deus, o bebê bateu as diminutas asas pela primeira vez e voou. Ele disparava, rodopiava, subia e descia numa dança frenética de felicidade. Repetia sem parar o Nome do Senhor, num louvor de amor inconteste. Desejava voar para sempre em torno de seu Deus.
E ele voou e voou, enquanto o tempo passava e ele amadurecia, vindo o bebê a transformar-se em um menino. Para Deus, era como olhar a Si mesmo como criança.
Sobrevoando a imensidão do Senhor, repentinamente, o jovem alado experimentou um sentimento diferente do amor, tudo que conhecera até então. Uma sombra escura e opressiva desceu como um manto sobre ele.
Erguendo o olhar, ele percebeu, a uma distância imensurável, uma das enormes mãos de Deus segurando um espírito negro que se contorcia e vibrava numa luta sem trégua para libertar-se.
O menino ficou ali, parado, flutuando inerte no limbo, num misto de surpresa e estranha fascinação por aquela forma obscena.
– Essa é a Besta que habitava dentro de Mim – revelou Deus. – Não a tema, pois não permitirei que ela lhe faça mal.
– Como pode um ser tão medonho haver existido no seio do Criador, que é só bondade, razão e beleza?
– A natureza de Deus é um mistério além de sua compreensão.
– Sim, meu Senhor – disse o jovem, baixando a cabeça. – Eu perguntei apenas pelo amor e preocupação que tenho para com o Todo-Poderoso.
– Lembre-se, Meu filho. Além da Minha perfeição, dei-lhe a sabedoria.Use-a para reconhecer e debelar o Mal, se algum dia este se insinuar em seu coração ou se aventurar de longe para atingi-lo. Pois maiores são as forças do amor e do conhecimento. Contra elas, nada podem a
fúria e a selvageria.
LÚCIFER
O menino assentiu e agradeceu pelas dádivas do Senhor. Mas, ao presenciar o Mal, ele perdeu a inocência e sentiu vergonha por estar nu. Percebendo isso, o Criador proveu-o de um manto negro, de tecido macio e resistente, para vestir.
Deus moveu então Seu braço esquerdo para fora da visão do menino.
Este retomou seu vôo ao redor do Senhor, enquanto crescia para tornar-se um adulto no ápice de seu poder, inteligência e beleza. E, satisfeito com Sua criação, Deus presenteou-a com um nome.
– Eu o batizo de Samael, o Filho mais Amado.
Foi a vez de Samael chorar lágrimas de felicidade. Ele se sentiu orgulhoso e grato ao seu Pai.
– És tão glorioso e estupendo, Meu doce Samael, que decidi criar outros como você. Serão à sua imagem, porém diferentes. Pois você será sempre Meu favorito e o único a compartilhar Comigo o dom da perfeição.
Chamarei sua raça de anjos, os Eolel ou Arautos do Senhor. E serão abençoados a dividirem com você a eternidade ao Meu lado.
– Sagrado seja o Senhor – disse Samael, com uma mesura.
E Deus estendeu a mão direita e, com um único aceno, fez surgir uma cidade prateada e luminosa, tão gigantesca que preencheu o vácuo que existia abaixo de Si.
– Esta será a morada dos anjos. O Primeiro Céu – anunciou Deus.
– Toda a Criação existirá sob ela. Acima, haverá apenas o Senhor.
E Samael voou até a Cidade Prateada. Suas muralhas irradiavam uma luz suave e agradável. E Samael passou pelo grande portão principal e deparou-se com vastos corredores e altíssimos recintos de paredes nuas e luminosas. Não havia escadas, pois delas seres alados prescindiam.
A majestade da construção expressava-se em números. Havia vinte e cinco milhões de aposentos; seiscentos e noventa e três mil salões de distintas formas e tamanhos; quatrocentos e vinte e um mil depositários; cento e trinta e sete mil oficinas de trabalho; quatorze mil praças; treze mil torres ordinárias; cinco mil e seis forjas; quatro mil e quinhentos herbanários; cento e noventa e nove ateliês; cento e setenta e um conservatórios;
sessenta e quatro galerias; doze prefeituras; e um palácio central, de onde brotava a gigantesca Torre da Aliança, seu topo ornamentado por sete grandes e misteriosos selos de pura energia.
Samael prostrou-se de joelhos, admirado com a obra do Senhor.
Levante-se, Meu querido filho. Ainda há muito mais a ser visto – disse Deus.
E Samael voou para além dos limites da cidade e, aturdido, vislumbrou a existência de três outros planos, ou Céus, abaixo do primeiro. Um sob o outro, suas dimensões eram tão vastas quanto as da própria cidade.
O Segundo Céu era uma planície de lindos campos verdejantes e lagos de águas límpidas e tranqüilas. O Terceiro Céu, um deserto de areias brancas e macias, com brisas frescas e oásis ricos em frutos e água. O Quarto Céu, um mosaico de incontáveis ravinas e montanhas de impressionante beleza e harmonia, de florestas densas e fechadas e temperaturas baixas,
mas nem por isso menos agradáveis.
Maravilhado, Samael retornou a Deus, que o aguardava pairando sobre a magnífica Cidade Prateada. E da mão direita do Todo-Poderoso surgiu o segundo anjo. E a ele, Deus deu o nome de Gabriel, Aquele de Voz mais Bela. Gabriel era um bebê alado, desprovido da luminescência natural de Samael, porém quase tão lindo e perfeito quanto este, apenas
seus cabelos apresentavam-se como uma imberbe penugem dourada em vez de negros como os de seu irmão.
E Gabriel levantou vôo, cantando na mais suave das vozes lindos versos de louvor ao Senhor, que ecoaram pelos quatro cantos da Criação.
Após Gabriel, vieram Nathanael, Camael e Matraton. O último, um anjo careca e de olhos vermelhos como o fogo. Todos, variações do molde original, o primogênito Samael. No entanto, cada novo anjo que surgia se afastava um pouco mais da perfeição de Samael. E nem por isso deixavam de ser menos esplendorosos.
– Agora, repousa sobre seus ombros uma terrível responsabilidade, Meu Samael – disse Deus. – Cabe-lhe liderar e instruir seus irmãos como anjos do Senhor. Seus ensinamentos serão por eles repassados para a próxima geração e assim por diante.
– Como posso ensinar se ainda tenho tanto a aprender, meu Pai?
– Com a sabedoria que lhe dei. Ela o guiará nos momentos difíceis.
Chegou a hora de realizar todo o seu potencial, Meu amado filho. Não o criei apenas para adorar o seu Deus, mas, principalmente, para que você alce vôo com as próprias asas.
– Não vou desapontá-lo, meu Senhor – disse Samael, orgulhoso da confiança de Deus, ainda que fosse indisfarçável a ansiedade em sua voz.
LÚCIFER
15
– Cuide bem de seus irmãos.
Samael partiu com os quatro bebês para a Cidade Prateada, enquanto Deus seguia para as Alturas, fora do alcance de seus olhos. A primeira tarefa de Samael foi encontrar acomodações para os irmãos. Sendo eles tão pequenos, Samael decidiu mantê-los em um mesmo aposento. E esse foi o primeiro dos seus problemas. Pois, ao contrário de Samael, até
então acostumado a repousar sobre o corpo do Senhor, os anjinhos precisariam
de outro tipo de suporte para dormir, e o chão não lhe parecia a melhor opção. Impossibilitado de recorrer a Deus por ajuda, Samael forçou a mente atrás de uma solução. Sua força criativa, nunca antes utilizada, demorou um pouco a funcionar. Mas, de repente, uma imagem surgiu-lhe.
– Esperem aqui por mim – disse Samael aos bebês. – Eu já volto.
Samael decolou em direção ao Quarto Céu, o das florestas belas e frias. Da maior delas, extraiu, de uma só mão, uma árvore de grosso tronco e raízes profundas. Deitou-a no solo e passou a arrancar seus galhos com espantosa agilidade. Ele carregou o pesado tronco nu de volta à cidade.
Agindo quase sem pensar, como que conduzido por uma misteriosa força interior, Samael depositou o imenso tronco no assoalho de uma das oficinas de trabalho. Ele poderia escavar a madeira com os próprios dedos, mas, de alguma forma, aquilo lhe pareceu contraproducente. Logo, decidiu prestar outra visita ao Quarto Céu.
Samael vasculhou aquelas terras com seus olhos angélicos, até que estes se detiveram em uma das montanhas. Ele mergulhou velozmente, entrando de cabeça pela parede sul da montanha, atravessando as várias camadas de rocha sólida e saindo pela base norte do pico. Ele arremeteu para a cidade, trazendo nas mãos uma maciça pepita de bronze seis vezes
o tamanho de seu punho.
Samael desceu a uma das forjas. Ele, que levava dentro de si a chama primordial do Universo, fez crescer, por um momento, a luminescência de seu corpo, emanando uma intensa chama de sua mão esquerda, a qual acendeu uma das piras. Usando o calor e os próprios punhos para martelar o metal, Samael forjou a primeira lâmina, afiando-a com as unhas.
Empregou-a para esculpir um cabo de madeira do tronco, na medida certa para afixá-lo à lâmina. Assim, Samael acabara de criar o primeiro machado. Com ele, ficou muito mais prático extrair da madeira outro cabo. E, de volta à forja, aproveitou o que restara do bronze para finalizar um martelo.
As novas ferramentas permitiram-lhe manufaturar os pregos e as ripas de madeira com os quais construiu quatro pequenas camas. Os anjos ficaram maravilhados quando as viram. Nelas, dormiram agradecidos e com prazer. Samael então montou uma cama para si, para descansar próximo aos seus irmãozinhos e guardá-los em seu sono.
Samael vencera seu primeiro teste real aos olhos de Deus. A criatura provara que também era capaz de criar. Com entusiasmo, ele se entregou à tarefa de educar aqueles pequenos seres, os quais, por sua vez, mostraram-se rápidos e dedicados aprendizes.
Samael começou pelos Quatro Céus. Ele apresentou aos seus irmãos as diversas instalações da Cidade Prateada. Levou-os para banharem-se nas águas celestiais do Segundo Céu; provarem os frutos incomparáveis do Terceiro; e explorarem os territórios do Quarto. Neste último, Samael procurou treinar-lhes os olhos angélicos para examinarem dentro das
rochas, em busca de veios minerais que pudessem ser úteis.
À medida que as lições prosseguiam e seus irmãos cresciam, Samael ficou profundamente surpreendido com as diferenças que emergiam entre eles, as quais iam muito além das variações físicas. Ele jamais esperou que eles se distinguissem em personalidade.
Gabriel revelou-se o mais sábio e calmo deles. Nathanael, o mais divertido e esforçado em aprender. Camael, o das perguntas difíceis e perspicazes. E Matraton, apesar de cumprir impecavelmente seus deveres, sempre calado e distante.
Ao tornarem-se rapazes, Samael convocou-os para o único salão até então mobiliado, com não mais que uma mesa de estudos e cinco cadeiras. Eles tomaram assento para a lição que tudo mudaria.
– O que é isso, Mestre Lúcifer? – perguntou Camael, apontando para as quatro peças de tecido cuidadosamente dobradas sobre a mesa e chamando Samael pelo nome que lhe haviam dado em sinal de respeito, Lúcifer, o Portador da Sagrada Luz.
– Essas são roupas que teci para vocês – disse-lhes Samael.
Os anjos estranharam, pois nada viam de errado em sua nudez, ainda que Samael estivesse sempre vestido em seu manto negro, o que eles tomavam como uma mera distinção de Deus para com Seu primogênito.
– Elas são feitas da seda dos “bichos de árvore” existentes no Quarto Céu – explicou Samael. – Vocês precisarão delas a partir de hoje.
Os anjos entreolharam-se. Mesmo Matraton esboçou certa curiosidade.
– Eu lhes ensinei a maneira correta de louvar o Senhor – rememorou
Samael. – Como buscar repouso no Segundo Céu, comida no Terceiro
e recursos no Quarto. Eu mostrei a vocês como fazer ferramentas
e, com elas, resolver suas necessidades. Vocês provaram isso construindo as cadeiras que usamos e a mesa à qual sentamos. Nada mais me resta a instrui-los, a não ser no Mal.
– Mal? – repetiu Gabriel, sentindo seu coração pesar ao mero pronunciar
da palavra.
– Vistam suas roupas e eu mostrar-lhes-ei – disse Samael, pondose
de pé.
Ainda que desajeitados, de início, com as peças, cada anjo vestiu
seu manto, todos de um branco tão puro que tocava o sagrado. Samael
decolou, acompanhado por seus irmãos.
Os rapazes tremeram de pavor diante da Besta na mão esquerda de
Deus. Eles sentiram-se gratos ao seu mestre por ter-lhes providenciado
roupas para que escondessem as vergonhas. Samael, por sua vez, estava
aturdido.
A Besta comportava-se diferente de antes; não mais irracional,
movia-se agora de forma sub-reptícia, como se espreitasse a presa. Isso
permitiu a Samael uma visão mais clara de todo o seu fascinante horror.
O ser sombrio possuía um corpo anelado e uma carranca de olhos sem
órbitas, dotada de uma boca disforme com longas e afiadas presas. Ele
voltou-se para Samael e os anjinhos como se quisesse devorá-los.
– A Besta adquiriu autoconsciência desde a última vez que nos vimos
– explicou Deus, diante da interrogação estampada na face de Seu
primogênito. – Ela agora chama a si mesma de Mefistófeles.
– O que ela busca? – questionou Camael.
– Destruição – respondeu o Senhor. – Sua meta é exterminar a
Criação.
– Maldita seja a Besta – bradou Nathanael, com a concordância
dos demais.
Mefistófeles riu-se deles e exibiu suas mandíbulas num grito animalesco
de ódio e desprezo que percorreu toda a Criação e gelou o sangue até de Samael. Mas este se recusou a temer o Inimigo. Especialmente na
presença de seu Pai.
– Vejam como o Mal é inofensivo perante o poder de Deus – disse
Samael aos jovens. – Saibam como reconhecer a imundice e a perfídia
das trevas. E lembrem-se de que nós somos anjos. Criaturas de luz e vida.
Existimos para negar e combater a escuridão e a morte.
– Amém – clamaram em uníssono os rapazes, afastando o medo
de dentro de si.
– É chegada a hora – disse Deus, recuando a mão esquerda para além de seus olhos e trazendo para junto deles a direita. Ele a abriu e de sua palma voaram vinte anjos bebês. Eles rodearam Samael e seus aprendizes. – Para cada um de vocês, há cinco novos anjos que precisam
ser ensinados. Ajam rápido, pois muitos outros virão.
– Sim, meu Senhor – disse Samael, inclinando-se. E voltou-se para
os outros. – Vamos.
Os quatro aprendizes assentiram e partiram com Samael, escoltando
os recém-nascidos para a Cidade Prateada. Samael viu seus aprendizes
tornarem-se adultos, enquanto os bebês viravam meninos. Ainda que fossem ligeiramente mais lentos para aprender do que a geração anterior, Samael e seus assistentes entregaram a Deus, no prazo, vinte
novos aprendizes treinados. O Senhor confiou-lhes então cento e vinte e
cinco novos bebês. E essa geração foi mais lenta do que a anterior, e, assim, sucessivamente, até que, após os primeiros mil e quinhentos anjos, os níveis de imperfeição estabilizaram-se.
Todos os anjos que surgiram a partir daí detinham capacidades físicas
e intelectuais muito semelhantes entre si. Porém, marcadamente
inferiores às dos Serafins, ou Líderes, casta organizada por Samael para
reunir os primeiros mil e quinhentos e comandar os Querubins, ou zangões,
casta inferior que aglutinava os demais.
Sobre essa primitiva hierarquia, Samael erigiu a estrutura administrativa
primordial dos Quatro Céus, a qual ainda evoluiria muito com a experiência e o crescente número de anjos. A população angélica estava
em seiscentos e sessenta mil quando começaram a aparecer, para espanto geral, as primeiras fêmeas. De início, só um punhado delas, porém, logo se tornariam maioria nas novas gerações que surgiam.
Diante desse acontecimento inusitado, Samael foi ter com o
Senhor.
LÚCIFER
19
– Meu Pai, o que são essas estranhas criaturas que nos envia? – perguntou
Samael.
– Eu as escolhi para serem suas companheiras – respondeu Deus.
– Trate-as com o respeito devido a qualquer outro anjo.
– Mas elas parecem tão frágeis...
– Engana-se! – irritou-Se Deus. – Faça o que digo! Sem questionamentos!
– Perdoe-me, meu Deus. Eu buscava entender apenas para melhor
servir.
– Entendimento não é necessário. Somente obediência.
Samael baixou a cabeça.
– Desse momento em diante, só virá à Minha presença se e quando
for convocado – disse Deus, consternando Seu primogênito. – Há muitos
de vocês agora e Eu tenho demasiado trabalho diante de Mim... você
compreende?
– Sim... meu Senhor – mentiu Samael. Ele não compreendia.
– Vá agora, Meu filho. E continue cuidando da Criação em Meu
Nome.
Samael foi-se para seu trono no Grande Salão da Cidade Prateada.
Lágrimas desciam de seus olhos. Ele se sentia amargurado e ferido.
Como Deus não tinha mais tempo para ele, quando por uma eternidade
só houvera os dois?! Justamente os dias mais felizes de sua existência...
Samael servira e amara o Criador incondicionalmente. Deus era
tudo para ele, mas claramente descobria que ele não bastava a Deus. Seu coração estava tomado pelo ciúme. Para com tudo e todos. E esse era o caminho do Mal.
CAPÍTULO II
Serafins e Querubins
Do alto de uma das raras colinas do Segundo Céu, os anjos Miguel
e Ravel entretinham-se em um jogo muito popular entre seu povo.
– Bom lance – disse Miguel, trocando sua asa cansada pela outra para continuar a proteger-se da chuva que banhava suavemente as planícies ao redor. – Você está cada vez mais rápido. Em breve, terá de procurar por um oponente mais habilidoso do que eu.
– A Cidade Prateada perderá sua beleza antes que isso aconteça, velho amigo – riu-se Ravel, mantendo também uma das asas sobre a cabeça. – Você é um mestre no Gaborah. Tudo que faço é esforçar-me para acompanhá-lo.
A trágica amizade de Miguel e Ravel, motivo de inúmeras canções e versos angélicos até o final dos tempos, foi particularmente extraordinária naqueles primórdios, por envolver um Serafim e um Querubim.
Até então, era comum aos membros das duas castas não se envolverem fora do trabalho. A única exceção óbvia era entre machos e fêmeas, uma vez que todas estas haviam nascido Querubins e tinham sido tomadas como companheiras tanto pelos Serafins quanto pelos Querubins machos.
Mas não por todos. Miguel era um dos que haviam se recusado.
Diferentemente de seu bom amigo Ravel, que se casara com Azazel, a mais bela dentre todas as fêmeas, desejada por Serafins e cobiçada pelos próprios príncipes da Cidade Prateada, à exceção de Matraton, sempre sozinho e fechado em si mesmo. Porém, Azazel tinha o espírito independente, e seu coração livre ela entregou somente àquele que desejou:
Ravel, de sorriso largo e caloroso, que amou Azazel no momento em que a viu e fora pego de surpresa ao ser correspondido por tão deslumbrante criatura. Pois Azazel tinha os olhos azuis como as cristalinas águas de Tamberiam, o maior dos oásis do Terceiro Céu. E seus cabelos eram de um dourado superior mesmo aos ricos veios de ouro das Gorthnens, as Minas Profundas, conjunto de infindáveis túneis escavados no rochoso e poeirento vale Gorth, íngreme divisória entre os montes Minarath e Krull, as duas colunas negras que se erguiam no extremo sul do Quarto Céu.
Todos os nomes, para todas as coisas e lugares conhecidos, haviam sido dados por Samael Estrela da Manhã, segundo a língua angélica e os desígnios de Deus. Príncipe Samael batizara até mesmo os anjos, a começar da terceira geração de Serafins.
Mas alguns nomes os anjos trataram de criar por si mesmos. Como o Gaborah, o Jogo da Mente, concebido por Nathanael para a diversão de seus subordinados nos intervalos das tarefas, o qual logo se espalhou pelos domínios celestiais.
As peças usadas no Gaborah resumiam-se, na verdade, a uma das muitas pequenas espécies de animais que haviam surgido recentemente nos três planos abaixo da Cidade Prateada. Seu aparecimento provocara grande surpresa e comoção entre os Arautos do Senhor. Samael chamara-os de insetos, Asharemn ou Pequenos Desconfiados, sempre buscando
refúgio e segurança nas sombras da vegetação ou sob a terra. Não que tivessem algo a temer dos anjos, que os amavam como às demais criações de Deus. Mas era da natureza tímida dos próprios insetos, que se mostravam então belos e desprovidos de ferrões, peçonha ou habilidade de voar. Pois o Mal, que tentaria todas as criaturas buscando subvertê-las, ainda não se abatera sobre eles.
Por isso, naqueles tempos de paz aparentemente eterna, os anjos ainda usavam carinhosamente os insetos como parte de suas brincadeiras, sendo o Gaborah a mais célebre delas, por suas regras simples, porém desafiadoras. Usando o poder de sua mente, cada jogador fazia levitar do solo um conjunto de nove escaravelhos de uma respectiva cor,
geralmente preto ou cinza. Aquele cuja mente primeiro formasse, no ar, com seu conjunto, uma figura tridimensional obtinha a vitória. O jogo combinava disciplina mental e criatividade, pois jamais se podia repetir uma figura feita por si mesmo ou pelo adversário. Para tanto, contava-se não apenas a partida atual, mas todas as disputadas por um anjo. Não havia o risco de trapaças porque anjos não trapaceavam. Esse problema
só surgiria mais tarde, quando outros vieram a praticar o Gaborah.
Miguel e Ravel estavam para iniciar nova rodada, quando um mensageiro chegou num bater de asas, um Querubim portando o estandarte de Samael, um fundo negro desaparecendo sob incontáveis raios de luz branca explodindo do seu centro.
– Miguel, Serafim da Vigésima Oitava Ordem, os Cinco da Cidade Prateada convocam-no a comparecer perante o Grande Salão – anunciou o mensageiro.
– Receio que teremos de continuar nosso jogo mais tarde, meu irmão – disse Miguel, com um sorriso para Ravel. Um sorriso que disfarçava sua ansiedade diante da magnitude daquele chamado.
Ravel acenou com a cabeça, despedindo-se de Miguel, que partiu atrás do mensageiro. Preocupado com o amigo, mas nada havendo que pudesse fazer, e restando-lhe ainda seis Ciclos antes de precisar retornar ao trabalho nas forjas de Tormel’ab, no distrito sul do Primeiro Céu, Ravel decolou para o extremo leste do Segundo Céu. Lá, o sinuoso rio
Iamujj desaguava na vastidão da Oerpeb, a Lagoa Elíptica, marcada pela diminuta e solitária ilha que Samael batizara Iarth Analel, Berço Verde, devido à sua relva brilhante e perfumada, mas que passara a ser conhecida como Moen Atpeb, Altar das Águas, depois que Ravel e Azazel a escolheram para a celebração de seu matrimônio.
Para os anjos, o casamento era uma cerimônia restrita aos noivos, que trocavam seus juramentos de união eterna perante Deus como única testemunha. Por esse motivo, Azazel amava aquela pequenina ilha mais do que qualquer outro lugar, passando nela boa parte de seu tempo, geralmente reproduzindo em telas as paisagens encantadoras que se descortinavam ao seu redor. Um trabalho capaz de estender-se pela eternidade, pois incontáveis eram os matizes de luz que cintilavam pela relva insular e infinitas as combinações de cores que enfeitavam as águas límpidas da Oerpeb, cada qual implorando para ser imortalizado pelos diferentes pigmentos criados por Azazel, cuidadosamente extraídos de diferentes tipos de flores e troncos de árvores, como tinta para suas
pinturas.